sábado, 25 de junho de 2011

A fome é uma criação humana

O Brasil está diante de uma oportunidade inédita: acabar com a fome e com a pobreza extrema, que atormentam milhões de famílias em praticamente toda a história do país. Mas para Selvino Heck, assessor extraordinário da Secretaria Geral da Presidência da República, é preciso mais. Não podemos conviver com os maiores índices de desigualdade social e econômica do mundo sem nos mobilizarmos num ato de cidadania para reverter esse quadro.



A fome é uma criação humana

Mundo Jovem: Por que existe fome no Brasil e no mundo?

Selvino Heck: Se olharmos esse momento histórico brasileiro e mundial, nós temos uma questão estrutural e uma questão conjuntural. Estamos numa crise econômica profunda, que começou em 2007 e, segundo os especialistas, deverá continuar talvez por uma década ainda. Isso tem levado ao aumento da fome no mundo. Todas as reflexões têm mostrado essa situação: a fome, que estava diminuindo (em torno de 800 milhões), hoje está atingindo cerca de um bilhão de pessoas. E cresce nos países mais pobres, especialmente na África e na Ásia, mas cresce também, por incrível que pareça, nos Estados Unidos e na Europa. Porque há uma crise que faz com que o crescimento econômico seja menor e que a concentração de renda e de riqueza esteja aumentando no mundo. Mas, pela primeira vez na história, essa crise não está acontecendo da mesma forma no Brasil e na América Latina e não está tendo também os mesmos efeitos.

Do ponto de vista estrutural, a fome é resultado do tipo de sociedade que temos: uma sociedade capitalista que concentra renda, exclui as pessoas, não permite que haja igualdade e uma melhor distribuição de renda. Então a razão estrutural é esta: uma sociedade que visa ao lucro, e o lucro acontece junto com o acúmulo de riqueza e de renda. Além disso, nós vivemos 20, 30 anos de neoliberalismo. O neoliberalismo significa: "Quem pode mais, chora menos”. Mas não se trata apenas da política econômica e social, é também uma política cultural, de valores, que influencia na maneira como as pessoas agem em relação umas às outras. Precisamos fazer um trabalho longo de reconstrução de valores de solidariedade.

Mundo Jovem: Então, a fome é uma situação criada pela organização humana?

Selvino Heck: O exemplo é o próprio Brasil, que sempre apresentou fome e miséria em grau acentuado e que na última década está diminuindo. Existem políticas sociais, governamentais, existe o programa Fome Zero e um conjunto de outras políticas que enfrentaram a fome. Já existe no Brasil, há uns 15, 20 anos uma forte presença de organizações sociais: toda a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, no início coordenada pelo saudoso Betinho.

Isso significa que, se a sociedade se mobiliza, se o governo tem políticas públicas para enfrentar a fome, ela diminui e pode até acabar. Se você olhar um país como Cuba, lá não existe fome há muito tempo, porque existem políticas de Estado que colocam como questão central o direito ao acesso das pessoas à alimentação. A fome não é natural. A fome depende das políticas sociais e econômicas.

Mundo Jovem: O que ainda persiste no Brasil é a desigualdade?

Selvino Heck: Nós temos no Brasil uma questão estrutural ao longo de séculos: sempre se produziu uma desigualdade econômica e social muito grande, e que continua. Vem diminuindo pouco. Márcio Pochmann, presidente do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), afirma que 10% ainda concentram um percentual de 70% da riqueza nacional, sendo que os 90% mais pobres têm acesso a apenas 25% a 30% da renda nacional. Na opinião dele, se a gente considerar as famílias donas de conglomerados econômicos, cinco mil famílias detêm mais ou menos 45% da renda brasileira, o que é uma concentração absurda.

Em 2003, nós estávamos entre os quatro ou cinco piores países do mundo em distribuição de renda. Hoje estamos entre os 15, 20 países com a pior distribuição de renda do mundo. Ou seja, melhoramos bastante, mesmo assim a desigualdade ainda persiste.

No início dos anos 2000 tínhamos no Brasil em torno de 50 milhões de pessoas que, ou passavam fome diariamente, ou não tinham alimento suficiente regularmente. Hoje, diminuiu mais ou menos pela metade, mas temos ainda em torno de 16 milhões de pessoas que estão na extrema pobreza, e esse é um universo que se pretende atacar agora. No momento em que a presidenta Dilma propõe que um país rico é um país sem pobreza, isso significa enfrentar o tipo de desenvolvimento econômico, enfrentar a desigualdade na distribuição de renda, a desigualdade econômica e social. Dizer que num país rico não há pobreza significa também dizer que se alguém vai ganhar, outro vai ter que perder. É muito mais difícil, mas tão urgente quanto acabar com a fome é construir um país com mais igualdade social e econômica.

Mundo Jovem: E o desperdício de alimentos?

Selvino Heck: Há um desperdício de alimentos por falta de uma estrutura melhor para que o alimento chegue à população. E isso implica melhorar a infraestrutura no Brasil. Muitas vezes se produzem alimentos que não chegam até a população. Há problemas de transportes e outros que levam ao desperdício. Há também toda uma cultura, um modelo de desenvolvimento que, muitas vezes, começa na nossa casa, onde, ao sobrar comida, coloca-se no lixo. Mas há principalmente uma situação de desperdício em restaurantes, hotéis... É uma cultura, uma visão consumista de quem paga e se dá o direito de jogar as sobras no lixo.

Já foi criado um banco de alimentos para juntar restaurantes, hotéis, escolas, enfim, instituições em geral, para reutilização e redistribuição desses alimentos. Mas é fundamental também pensar numa escala de valores, em que cada um de nós deve se sentir responsável, solidário, consciente de que a comida que temos, e que até sobrou, outros não têm.

O Brasil não tem política de abastecimento. Perde-se trigo, arroz, mandioca etc. porque não há política de estoque. No Conselho Nacional de Segurança Alimentar, uma das coisas que estão sendo priorizadas é que os governos municipal, estadual e federal possam garantir isso: onde há alimento de sobra, ter onde estocar. Ou ter alimento estocado para regular preços, pois no Brasil, muitas vezes, a inflação acontece pela falta de um regulador de distribuição de alimentos.

Mundo Jovem: O que é preciso ser feito para equilibrar a alimentação?

Selvino Heck: Historicamente, o Estado brasileiro esteve a serviço de poucos. Nosso desafio é, entre outros, construir um Estado democrático, a serviço de todos. Hoje o Brasil é a sétima economia do mundo e, no entanto, existem 13 milhões de famílias precisando do Bolsa Família. É um país que tem agricultura, tem água, sol, clima favorável; pode plantar duas a três vezes na mesma terra durante um ano, coisa que quase nenhum outro país do mundo tem. Precisamos da parceria do governo, das igrejas, das organizações sociais, da juventude para, de forma coletiva, construir um novo modelo, uma nova proposta, com uma nova mentalidade e uma nova perspectiva de sociedade.

Mundo Jovem: E não se deveria investir mais nas crianças?

Selvino Heck: A meta do Plano Nacional de Educação é dobrar o investimento em educação, desde a creche (construir mais 6 mil creches no Brasil), a Educação Básica, o Ensino Médio, o Ensino Profissionalizante e até o Ensino Superior. Mas não é suficiente construir e dar acesso à escola, e sim observar também que tipo de ensino, como lida com a realidade das pessoas.

O mundo está numa encruzilhada. Temos que decidir que mundo, que tipo de desenvolvimento se deseja, como conciliar com as questões ambientais. E o Brasil está num outro tipo de encruzilhada: é uma das referências do mundo, está em crescimento econômico, mas que tipo de sociedade se deseja construir? Esse é um desafio. Queremos matar a fome de pão, mas não basta apenas matar a fome de pão, embora isso seja fundamental e prioritário. Junto com o matar a fome de pão, deve-se saciar a sede de beleza, cidadania, democracia... Essa consciência coletiva é fundamental para enfrentarmos a fome e a pobreza.

Mundo Jovem: Que ações sugere para os jovens?

Selvino Heck: Primeiro, é um desafio. Ninguém tem respostas prontas. A juventude de 20, 30 anos atrás não é a mesma de hoje, portanto as formas de organização necessariamente serão outras. Hoje, a comunicação da juventude é uma comunicação instantânea, e essas novas formas de linguagem são fundamentais no sentido de serem incorporadas no dia a dia, para um trabalho social que se queira fazer, ou num movimento de conscientização e organização da juventude.

A primeira coisa a fazer é partir da realidade atual da juventude, dos seus problemas, das suas inquietudes. Então, ou se acham novos caminhos, novas formas de linguagem ou a juventude não pensará num mundo onde a solidariedade é fundamental e o cuidado com o meio ambiente é decisivo.

Uma endemia que precisa ser enfrentada

No ano de 2000, a Organização das Nações Unidas lançou os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (Oito Jeitos de Mudar o Mundo - Nós podemos). A intenção é a reestruturação social a partir da superação dos entraves estruturais e da responsabilização do poder público e da sociedade quanto às suas responsabilidades para a promoção da vida em dignidade com os direitos assegurados. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) propõe: 1) Erradicar a extrema pobreza e a fome; 2) Atingir o ensino básico universal; 3) Promover a igualdade entre os sexos e a autonomia da mulher; 4) Reduzir a mortalidade infantil; 5) Melhorar a saúde materna; 6) Combater a HIV/AIDS, a malária e outras doenças; 7) Garantir a sustentabilidade; 8) Estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento.

Com esses Oito Jeitos de Mudar o Mundo, o PNUD alerta para problemáticas que assolam nossa sociedade continuadamente e que não podem mais ser remediadas, tendo que ser enfrentadas com políticas públicas eficazes para minimizar suas consequências. A erradicação da extrema pobreza e da fome - mui sabiamente enfocada como prioridade - deve ser tratada com maior responsabilidade, visto que a fome, segundo o escritor brasileiro Josué de Castro, deixou de ser apenas a simples falta de alimentação com implicações biológicas e fisiológicas, assumindo proporções contingenciais de forma contínua, passando de epidemia para endemia social.

A fome interliga-se direta e indiretamente ao analfabetismo, à desigualdade entre os sexos, à mortalidade infanto-juvenil, à gestação precoce e sem os devidos cuidados, à disseminação de doenças e à sustentabilidade. Um dos elos entre os países, membros ou não da ONU, deve ser a busca pela superação da extrema pobreza e da fome. Só assim os direitos humanos inerentes a cada cidadão podem ser garantidos. Ao sanar essa endemia, que se dê o primeiro passo para alcançar a totalidade dos objetivos subsequentes.

Josué de Castro dizia ainda que "a fome e a guerra não obedecem a qualquer lei natural, são criações humanas”. Isso nos remete à necessidade de reconhecermos nossas responsabilidades enquanto cidadãos, entidades governamentais e demais representações. Essa responsabilidade é conjunta na superação desse problema, muitas vezes banalizado e comercializado, visto que a fome é fruto de uma sociedade desigual.



Iara da Rocha Dantas,

Jaguarari, BA.

Endereço eletrônico: iara.rocha.sso@hotmail.com

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