Tenho aqui sobre a minha mesa de trabalho um cartaz da festa de padroeira de uma paróquia do Distrito Federal. Sabe-se que é festa de igreja pela manchete e porque nele há a imagem da padroeira. Do contrário seria impossível saber. De fato, o cartaz não fala de nenhum momento evangelizador, de nenhuma celebração litúrgica, mas convida o público para uma grande farra regada com muita bebida e muito barulho de várias bandas de cantores sertanejos. Além do anúncio da farra, das bandas e dos nomes dos patrocinadores, o cartaz traz a informação do preço do bilhete para entrar na farra e a indicação dos locais onde ele pode ser adquirido. Nada contra a cervejinha, pois também gosto de saboreá-la de vez em quando. Nada contra as bandas sertanejas, embora eu prefira escutar sempre a música raiz, tocada por autênticos violeiros caipiras. Mas fiquei me perguntando: o que isso tem a ver com a evangelização?
Chego em casa, depois de um dia de trabalho, e ligo a TV. Começo a mexer nos canais, tentando encontrar alguma coisa pra ver. Deparo-me com um programa católico de TV. O programa se diz voltando para a evangelização do público jovem, mas tem tudo para ser um programa humorístico. De fato, alguns jovens, com cara de quem comeu e não gostou, fazem algumas perguntas e um padre com rosto angelical, de quem não tem sexo, responde às perguntas. Lá pelas tantas, um desses jovens, com cara de mais esperto, pergunta onde encontrar na Bíblia a prova de que não se pode fazer sexo antes do casamento. O padre começa dizendo que, com os jovens, é preciso falar claro e vai direto ao ponto: "No livro do Gênesis, na primeira página da Bíblia, pois lá está escrito: ‘por isso o homem deixa seu pai e sua mãe, e se une à sua mulher, e eles dois se tornam uma só carne’”. Gostei do programa "humorista”, pois dei uma boa gargalhada. Mas depois fiquei sério e me perguntei: isso é evangelização?
Continuei a mexer nos canais e, de repente numa outra TV católica estava acontecendo um debate sobre o celibato. Respondia um padre solenemente empacotado pelas vestes clericais. De repente o apresentador faz uma "provocação” ao entrevistado: "o padre não casa, não tem mulher, não tem filhos. No final do dia, depois que todo mundo vai embora da igreja, ele não sente solidão?” O padre entrevistado, com ares de quem pensa que todo mundo é bobo, responde com uma grande asneira (lembro que asneira vem de "asno”!): "Não, eu não sinto solidão, eu sinto soledade. Soledade é viver com Jesus e quem está com Jesus não está sozinho. Não tem a Nossa Senhora da Soledade? Pois é, eu não sinto solidão, mas soledade”. Dei uma baita de uma gargalhada. Sem querer, estava novamente assistindo a um programa televisivo de humor. Mas, cansado por causa do dia de trabalho, fui pra cama com a pergunta: por acaso isso é evangelização? Porém, antes de dormir, passei pelo meu escritório e pequei um dicionário para ver o que significava a palavra soledade. Estava escrito: "soledade, o mesmo que solidão”. Dei outra risada bem gostosa. Minha mulher, lá do nosso quarto, escutou e ficou curiosa, querendo saber por que eu estava dando tantas risadas gostosas. Quanto lhe contei os episódios, caímos os dois numa gostosa gargalhada. Mas a pergunta ficou no ar.
Sabemos que o verbo evangelizar (euangelizesthai), e o substantivo evangelho (euaggelion), desde os tempos áureos da antiga Grécia, significam literalmente anúncio de uma boa notícia. Estes termos estão na raiz da palavra evangelização. Em Israel o correspondente hebraico do verbo e do substantivo grego também tem o mesmo significado: anúncio de uma boa e confortante notícia. Os termos eram usados de modo especial para falar da alegre notícia da salvação e da libertação trazidas por Javé. "Como são belos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia a paz, que traz a boa notícia, que anuncia a salvação, que diz a Sião ‘Seu Deus reina’” (Is 52,7).
Com a chegada de Jesus os termos evangelizar, evangelho e evangelização ganham uma conotação especial. Permanecem significando anúncio de uma boa notícia, mas acrescidos de um detalhe importante: boa notícia para os pobres e oprimidos. "O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção, para anunciar a Boa Notícia aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos, e para proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc 4,18-19). É claro que Jesus, citando Isaías, não inventa a evangelização dos pobres, mas, segundo Lucas, torna-a programa oficial da sua missão e, de consequência, da missão dos cristãos e das cristãs.
Desde o Concílio Vaticano II não se tem feito outra coisa a não ser proclamar solenemente que a missão da Igreja é evangelizar. Mas, quase cinquenta anos depois, chego à conclusão de que boa parte da Igreja, senão toda ela, não sabe e não quer evangelizar. Os exemplos acima, que podem ser multiplicados aos milhares, revelam isso com clareza. Onde está a boa notícia para os pobres, para os oprimidos, para os sofridos? Para que servem as festas de padroeiro e os programas televisivos católicos? De que forma os pobres, as vítimas da opressão, os oprimidos estão sendo evangelizados?
Se aquela festa, anunciada pelo cartaz da paróquia, fosse em benefício dos pobres, não restaria dúvida de que seria uma verdadeira festa evangelizadora, mesmo que a base de muita cerveja e de bandas sertanejas. Dois meses atrás, participei de uma festa junina aqui no Distrito Federal, promovida pelos espíritas em favor de uma casa para idosos. Na festa não tinha bebida alcoólica, por uma opção da direção da instituição, mas tinha todas as outras bebidas e comidas típicas do São João. O diretor, que também é meu colega de trabalho, me disse que este abrigo para idosos é mantido pelo trabalho de voluntários, pelas doações das pessoas, por esta festa junina e por outra que é realizada por ocasião do Natal. E quem visita o abrigo sabe como os velhinhos são bem cuidados.
Portanto, não há mais evangelização em nossos dias, exceto em determinadas ocasiões e lugares. A Igreja perdeu definitivamente o rumo e não consegue levar boa notícia a ninguém, particularmente aos destinatários escolhidos por Jesus em seu pronunciamento na sinagoga de Nazaré.
O que se vê hoje são verdadeiros espetáculos de puro exibicionismo, voltados para a alimentação da egolatria de certos dirigentes e lideranças. As festas paroquiais estão destinadas ao lucro, a arrecadação de dinheiro para o sustento da "pastoral de manutenção” e para manter o luxo e a ostentação de certas lideranças, particularmente de padres e bispos que vivem às custas dos pobres, com a desculpa de que estão evangelizando. Poucos dias atrás me encontrei com um grupo de uma determinada paróquia de um bairro pobre do Distrito Federal. As pessoas se queixavam das constantes viagens do pároco à Terra Santa e Europa, deixando a paróquia no abandono, enquanto continua extorquindo dinheiro do povo pobre para custear suas peregrinações.
Tem razão Paulo Suess quando recentemente perguntou: "Quo vadis ecclesia? Para onde vais, Igreja?”. Ele mesmo sugere a resposta: "Estou indo por aí”. E eu, parafraseando o Cardeal Newman, acrescento: "como uma tonta”.
José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo. Doutor em teologia. Ex-assessor do Setor Vocações e Ministérios/CNBB. Ex-Presidente do Inst. de Past. Vocacional. É gestor e professor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília
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